A primeira caça

•fevereiro 11, 2010 • 2 Comentários

Preciso deixar as impressões sobre Érico de lado e voltar ao meu objetivo principal, narrar minhas histórias ao longo dos séculos, a começar pelo dia de minha transformação.

Assim que consegui cavar as pás de terra que pesavam sobre meu corpo e senti os raios da lua lamberem descaradamente minha pele fria, senti que já não era mais a mesma. Podia identificar cada célula do meu corpo, cada ruído ao meu redor e cada odor a metros de distância. A fome que começava a se apossar do meu corpo fez meus olhos se escurecerem e enxerguei em cada um dos outros três neófitos um adversário.

Fernão sentia no ar o clima de rivalidade e era exatamente o que ele queria. Aproximou-se, arrastando um homem de uns 30 e poucos anos, sujo e com as vestes rasgadas. Afirmo que a vontade de cada um ali era de rasgar-lhe o pescoço e sugar até a última gota do líquido precioso que corria em suas veias. Mas Fernão era nosso mestre, e não podíamos nos mover até que ele ordenasse.

Ele desamarrou o homem e disse “foge, criança” de um jeito ao mesmo tempo paternal e luxuriante, que ainda faz minha pele se arrepiar só pela lembrança. Ele deu uns cinco minutos de vantagem ao mortal e então nos liberou, dizendo que se quiséssemos viver, deveríamos provar nosso valor.

Os outros três correram desesperados mata adentro, mas eu fiquei para trás. Apesar da fome, do desespero, meu lado racional ainda se debatia dentro do que restava da minha alma e simplesmente entrei na floresta caminhando e observando como tudo a minha volta havia ganhado uma nova dimensão.

Eu tinha fome, mas havia mais fome pelo saber, pelo compreender a nova vida. Caminhei insegura pela floresta e quando notei, quando tomei ciência de meu próprio corpo percebi que não respirava, não conseguia ouvir os batimentos do meu próprio coração, apesar de todos os outros sons serem exagerados para meus ouvidos sensíveis.

Consegui ver um dos meus rivais correndo sem direção precisa e apurei ainda mais minha audição. Há poucos metros a minha direita, um coração batia descompassado. Eu conseguia distinguir o som dos músculos do peito que arfava enquanto a respiração era abafada pelo que eu julguei ser a manga da camisa.

Fui sorrateira, tal qual aprendi na minha época pagã em que me via forçada a me aproximar de um gamo e tocar-lhe o chifre para que minha vida fosse fértil, e alcancei a árvore sobre a qual o ex-prisioneiro de Fernão havia subido. Para sua infelicidade, ele havia cortado o braço na fuga e o cheiro de sangue, suor e o que eu vim saber mais tarde se tratar de adrenalina, me impulsionaram galhos acima e antes que ele pudesse exclamar surpresa, seu sangue já avermelhava meus lábios.  

Humanidade em lençóis de seda

•fevereiro 5, 2010 • 1 Comentário

Queria detalhar aqui tudo o que aconteceu após a “equação”, mas não consigo. Não que eu tenha algum problema em falar de sexo e de como me comporto na cama com uma presa ou com outro vampiro. Ainda hei de narrar muitas das vezes que incendiei o quarto em que me divertia com Alex…

O que limita meus relatos aqui é o fato de desconhecer o tipo de relação que estou travando com Érico. Ele tem encantos incomuns para os homens de sua idade e sua conversa flui fácil, me arrancando alguns sorrisos. Imagino ser a efemeridade de sua existência que o faz ser assim, tão profundo e leve ao mesmo tempo.

O toque das mãos de Érico na minha cintura, me fazendo mover na cama no ritmo e intensidade que ele faz questão de deixar ao meu comando, a textura da sua língua deslizando ao longo do meu colo e o perfume que se desprende de sua pele, junto com o suor que ele produz, despertam em mim sensações adormecidas.

Muitas vezes eu o pego me observando, um sorriso quase triunfante, como se afirmasse a si mesmo que era o dono da situação. Deliciosamente tolo…

No momento eu o observo dormir e acompanho o subir e descer de seu peito enquanto ele ressona. Desisti de fazê-lo minha cria, ao menos por enquanto, apenas para apreciar sua humanidade um pouco mais.

Tenho a ligeira impressão de que Alex não vai gostar disso.

Desejo entre presas II

•fevereiro 3, 2010 • 2 Comentários

Sinto não seguir uma cronologia direta em meus relatos, mas os fatos do meu passado e presente se misturam e não sei dizer, exatamente, qual deles me impinge sensações mais marcantes.

Por isso interrompo mais uma vez a narração sobre o meu despertar vampírico. Mas esta semana voltei a sentir a paixão pela caça. Érico, o rapaz que eu já citei anteriormente, tem se mostrado cada vez mais difícil e por isso mesmo mais interessante.

Há alguns dias consegui ganhar um beijo seu. Um beijo carregado de luxúria e antítese. Sim, antítese, porque pude perceber que havia desejo pulsando em seu corpo ao mesmo tempo em que ele negava a si mesmo o que de fato queria de mim. E quando ele quis partir, eu apenas sorri, lhe dei as costas e caminhei novamente para a festa em que estávamos, buscando uma taça de champanhe.

Não o vi por alguns dias, até que o destino (sim, ás vezes eu acredito que o destino existe) nos uniu novamente em mais uma convenção social. Ele não foi indelicado, pelo contrário. Aproximou-se sorridente, como quem vê uma amiga querida. E ficamos conversando por algum tempo, sempre permeando nossas palavras com uma boa dose de vinho tinto. E assim foi até que parei de falar e me dediquei a ouvir suas histórias e seus comentários sempre carregados de um humor inteligente.

Creio que meu silêncio o incomodou…

 – Nós estamos conversando há meia hora e agora você fica em silêncio.

 – Estou pensando…

 – Pensando? Você está descaradamente olhando para os meus lábios e me diz que está pensando?

 – Sim, eu estou pensando em matemática.

– Matemática?

 – Estou calculando quantas taças de vinho eu ainda tenho que beber para criar coragem de beijá-lo novamente, e quantas doses você deveria ter tomado para não recusar meu beijo. Resumidamente, estou calculando a medida do seu pudor.

 Ele baixou os olhos, encabulado com meu jeito direto de ser. Mas notei que seus lábios ameaçaram um leve sorriso. E eu tive a resposta daquela equação assim que ele tornou seus olhos para mim…

Despertar – parte I

•janeiro 29, 2010 • 2 Comentários

Meu despertar foi muito além do que a imaginação, moldada pelas cenas de cinema e obras literárias, pode ser capaz de conceber. Eu despertei, aquele dia, praticamente ao mesmo tempo em que os outros três.

Impossível enxergar qualquer coisa diante de mim. Sentia um peso sobre meu corpo e meus braços e pernas não se moviam. Apesar de ser uma cena típica de um pesadelo, não me desesperei. Jamais fui dessas mulheres que se deixam levar pela angústia e pela histeria.

O medo sempre foi meu maior aliado e por causa dele sobrevivi à Inquisição. E desta vez não seria diferente.

Precisei cavar minha saída com minhas próprias mãos. O clarão da lua acima de mim foi como ar para meus pulmões. E confesso que naquele momento não notei que minhas funções vitais haviam sido reduzidas apenas ao pulsar do meu coração.

Fernão nos esperava do lado de fora, suas presas a mostra, um brilho de luxúria no olhar e um fio de sangue avermelhando seus lábios.

O cheiro férreo que vinha de sua boca era inebriante. Assim como todos os outros aromas no local, os sons até mesmo mais remotos, as diferenças de intensidade do vento noturno. O despertar de um vampiro é a maior experiência sinestésica que existe…

Desejo entre presas

•janeiro 28, 2010 • 3 Comentários

Ainda preciso relatar aqui as sensações do meu primeiro despertar, 24 horas após ter recebido a dádiva de Fernão. No entanto, os comentários que vieram após meu último post merecem um pouco mais de atenção.

Eu ainda me surpreendo com a estranha obsessão que os humanos têm por nós, vampiros. Vejo como um quase fetiche, como se o fato de termos presas salientes e pele fria pudesse proporcionar algum prazer diferente que a carne quente dos mortais.

Aceitaria de bom grado converter a todos que pediram pela dádiva. Mas no meu clã, na família a qual pertenço, e hoje posso dizer orgulhosa que detenho a posição de ancilae, é preciso mais do que vontade para carregar o nosso sangue.

É preciso além da vontade e da inteligência a capacidade de abnegar às paixões. Sim, paixão é mal vista entre os meus e é fácil entender o porquê. Quando se é apaixonado, seja por uma pessoa, um objeto ou uma causa, é praticamente impossível se contentar com o ato de possuir o objeto de sua paixão. Paixão é consumir. Acho que isto talvez mereça um tópico a parte.

Agora, um comentário direto ao meu querido Alex, acho que encontrei finalmente alguém que possa ser minha cria. Alguém que tem exatamente o olhar curioso e indagador, a alma sedenta por saber e a mente preparada para as grandes descobertas. E um pequeno detalhe, meu querido, ele nos teme.

Preciso mesmo explicar o quanto esse temor me fascinou? O quanto pensar em apresentar-lhe um mundo até então cercado de medos e conceitos sinistros e obscuros me deixa excitada, para dizer o mínimo?

Neste aspecto ele é exatamente o oposto de Felipe. E a pele morena, o perfume amadeirado que meus sentidos aguçados puderam captar a alguns metros de distância, a barba propositalmente por fazer e os olhos com um tom entre o castanho e o verde escuro deixam esta presa ainda mais apetitosa. Tão apetitosa que penso ser possível doer ainda mais me privar dele do que me doeu ser privada de Felipe.

Mas fique próximo, caríssimo. Afinal, nunca se sabe o que esperar dos humanos!

Dor e prazer

•janeiro 6, 2010 • 5 Comentários

Há alguns dias comecei a narrar a história do meu momento, da minha transformação. Mas esqueci de mencionar que não foi nada glamouroso. Pelo contrário, foi a mais pura exaltação ao que há de mais animalesco no ser humano.

Fernão, naquela noite, fez questão de transformar um a um. Cativou-nos com sua voz, seus olhos de um castanho esverdeado, como a água dos lagos nórdicos, suas palavras escolhidas a dedo não apenas nos convenceu de que era exatamente aquilo que buscávamos, mas nos fez crer que éramos nós que lhe pedíamos uma dádiva.

Estávamos em quatro humanos junto da comitiva de vampiros e carniçais. Todos prontos para a transformação. Fui a segunda a ser mordida por Fernão.

A sensação, a princípio, é a mesma de qualquer mordida de cachorro. Você sente sua pele rasgando, o sangue fluindo, mas a medida que a presa encaixa em sua carne, a dor vai diminuindo até se tornar apenas uma pontada aguda no centro do corpo.

Enquanto o sangue foge de suas veias, um frio difícil de ser descrito começa a lamber sua pele, o torpor domina seus membros e mesmo que queira fugir, você não consegue. Está preso àquela sensação torturante.

Está seduzido pela dor e pelo brilho que começa a enxergar na dama de negro que se aproxima cautelosa. Suas mãos de dedos esguios se estendem na direção do seu coração e antes que ela possa alcançá-lo, seu criador simplesmente para.

E quando A Morte finalmente se afasta, você sente cada parte do seu corpo se romper em milhões de pedaços. Uma explosão de dor irradiada em cada centímetro de pele. O ar some de seu peito, fazendo-o doer, seu coração diminui as batidas e os olhos começam a se embaçar, e se você pudesse falar, certamente a chamaria de volta e lhe imploraria que acabasse com seu sofrimento.

Até que você sente o líquido espesso e quente escorrer em seus lábios. Agridoce, forte, férreo… O sangue de seu mestre faz a dor que lhe ferroava a carne desaparecer, dando lugar a um prazer mais que sexual. E então, é tudo escuridão…

 

Música para meus ouvidos e corpo

•janeiro 5, 2010 • 1 Comentário

Em resposta ao comentário do meu querido Alex…

 

Sim, foi uma noite memorável, caríssimo! Para ser lembrada pelas próximas décadas, com certeza. Sangue sabor champanhe, música correndo pelas veias e vinho aquecendo nossos corpos frios. O que mais poderíamos querer? 

Há tanto que não dançava daquela forma. Com entrega, luxúria, lascívia e, sim, alegria. Não que me ache melancólica ou depressiva. Mas demonstrar o que me vai na alma é só para brindar momentos como os que passamos…

 Devo registrar que notei o quanto seus dedos estão mais hábeis tanto no violão, no meu precioso Stradvarius e, claro, em outras funções também! E você jamais precisará de desculpas para retornar aos meus domínios. Tem sempre passagem livre, embora eu adoraria ouvir novamente o som que você faz fluir do meu precioso violino.

 E quem sabe não podemos repetir a melodia que você também extrai da minha pele?

 Sim isso é um convite. E um desafio!

Ano Novo? Mesmo?

•dezembro 31, 2009 • 1 Comentário

Eu sei que deveria terminar o relato da minha transformação. Mas hoje é 31 de dezembro e eu realmente me sinto impelida a falar sobre essa tradição de Ano Novo. 

Quando se vive tanto, a imagem de um ANO NOVO, de um recomeço, de uma nova possibilidade acaba soterrada pelas areias do tempo. Desculpem-me os que ainda carregam em si a esperança de que tudo vai mudar de hoje para amanhã. Mas amanhã é apenas mais um dia. 

Nada vai ficar diferente. O sol vai continuar se levantando de manhã, as estrelas vão continuar brilhando a noite, e a vida vai seguir, com a mesma inconstância de sempre. 

Já não comemoro o Ano Novo há algumas décadas. Não sei ao certo quanto tempo. Apenas abro uma garrafa de vinho, pego uma taça e me deixo ficar apreciando o aroma da bebida enquanto observo o horizonte pontilhado pelas luzes da cidade. 

Meu Réveillon não é uma festa de esperança e comemoração. É de contemplação, silêncio e solitude. Mas talvez este ano seja diferente. Gween chegou a noite passada junto com Antoine, Elisa, Perseu (de quem já não me lembro o nome real) e Cristovão. Isso significa nada de silêncio, nada de solitude e muito menos contemplação. Gween e Cristovão apreciam a boa música e eu duvido que Perseu me deixará quieta sem dançar.

 Falta-nos um músico, divertido e capaz de arrancar as notas que realmente fazem quase bater o coração das criaturas da noite. O que me diz, meu querido Alex? Contaremos com sua presença? Ainda tenho aquele Stradivarius que você tanto ama. E claro, seu violão sempre será tratado como parte da família entre os nossos.

 Faz tanto tempo que passamos uma virada de ano juntos. Acho que a última vez foi numa queima de fogos em Paris, no Champs Élysées. Naquela época ainda usava tradicionais vestidos de veludo e mangas bufantes.

 Honestamente, espero que venha meu amigo. Sabe bem que um de seus dons é marcar épocas de minha vida. Quem sabe este ano você não consegue me devolver com sua música algo de que sinto falta na condição humana: esperança?

Como tudo começou

•dezembro 15, 2009 • Deixe um comentário

Acho que todos já perceberam o quanto Alex tem o dom de abalar minhas estruturas. Mesmo que isso desmorone algumas paredes ou pilares das minhas fundações íntimas, o tempo que eu levava para reformar a mim mesma era sempre um tempo de prazer. Fernão estava sempre ali, me ajudando nesse processo de reconstrução. Como na primeira vez.

Como já disse, eu fui caçada logo no início da Inquisição. Fugi durante semanas, embrenhando-me pelas florestas até que uma noite encontrei um acampamento. Parecia de viajantes, mas havia certo requinte no modo como aquelas pessoas se portavam.

Deram-me abrigo sem questionamentos e eu deveria ter suspeitado de que pessoas “normais” jamais abrigariam uma andarilha ainda mais em tempos de caças as bruxas. No entanto, meu cansaço me impediu de raciocinar.

Fui conduzida a uma tenda, onde pude me lavar e ganhei algumas vestes limpas de uma das mulheres, que mais tarde eu me acostumei a chamar de Gween. Ela se ofereceu para dar um jeito em meus cabelos e em poucos segundos seus dedos ágeis desfaziam os nós nos meus cabelos e os trançavam num penteado simples.

Quando voltei para perto da fogueira, havia vinho e comida, mas poucos ali dispunham dos alimentos. A maioria preferia apenas beber e dançar. Eu me contive para mostrar o mínimo de classe ao ser servida com um grande pedaço de carne, pão e frutas secas. Comi, bebi e aos poucos me permiti conversar, sabendo que eles também fugiam.

Alguma coisa no ar ao redor daquelas pessoas me inspirava confiança e eu revelei minha condição pagã e aprendiz de sacerdotisa da Grande Mãe. E os olhos faiscantes de todos se voltaram na minha direção.

Eu passaria quase a noite toda explicando as minhas tradições, falando sobre os cultos e rituais de adoração à Deusa, se ele não tivesse aparecido. Gween sentada ao meu lado, apoiada nos joelhos de um homem moreno, quase pardo, silenciou as perguntas quando viu a tenda principal ser aberta e a figura masculina, recortada pela luz da fogueira e dos archotes aparecer.

A lua estava convenientemente cheia aquela noite. E quando meus olhos se cruzaram com os dele, eu senti o inconfundível arrepio na espinha que me informava, desde pequena, quando os ventos da mudança começavam a me rondar.

 

Continua…

Crianças da Noite

•dezembro 10, 2009 • 3 Comentários

Assim somos chamados todos nós quando renascemos após enxergar a morte cara a cara. Porque, acreditem, isso realmente acontece. Quando você é mordido, quando você é escolhido para receber a dádiva da vida eterna, você precisa sentir a morte se aproximar, precisa ver o cinza gelado das pupilas sem vida que ela esconde sob o capuz escuro e sentir o calor sanguíneo deixar seu corpo à medida que ela se afasta novamente.

 Quando despertamos, após este momento surreal, e recebemos nossa primeira refeição direto do pulso de nosso mestre… entendemos o que a vida nos reserva dali pra frente. É como se tudo no mundo ganhasse novas cores, novos aromas. Passamos a viver pelos nossos sentidos e não mais por nossa razão.

 Nossa consciência se apaga lentamente enquanto o sangue, incrivelmente quente de nosso mestre, acaricia nosso paladar, fazendo cócegas em cada canto da boca e acendendo partes de nosso organismo até então desconhecidas ou deixadas de lado.

 Por isso somos crianças. Não entendemos limites, não respondemos com a mesma lógica de antes. Simplesmente agimos. E não há essa premissa de “agir primeiro e pensar depois”. A existência de certo e errado se mesclam na necessidade de satisfazer os próprios instintos e desejos. Quando se é uma criança da noite, um neófito, simplesmente não se pensa. NUNCA!

 Por isso o ato de se ter um “filho”, uma cria como costumamos chamar em nossos ninhos, é bastante incomum. O mestre é responsável pelos atos da cria até que o instinto passe a ser dominado pela razão novamente. E esse processo pode levar semanas, meses ou anos até.

 Eu demorei alguns meses, sete para ser exata. Fernão dizia que fui sua aluna mais aplicada, sua cria mais sensata e por isso mesmo a mais querida. Eu não fui a única cria a dividir sua cama, mas sei dentro de mim que foi apenas comigo que ele dividiu sua intimidade.

 Para vampiros existe uma diferença clara entre sexo e intimidade, do mesmo jeito que os humanos diferenciam sexo de amor. Ainda tentarei explicar isso, mas não hoje. Não agora.

 Hoje, 10 de dezembro, seria aniversário daquele a quem eu transformaria em minha primeira cria. Felipe, seu nome. Um belo rapaz, forte, corajoso, encarou minhas presas na primeira vez que o ataquei com uma espécie de curiosidade arredia. Ao mesmo tempo em que ele se sentia impelido a me rejeitar, algo dentro dele gritava para que eu sanasse suas dúvidas, para que o mordesse de uma vez, para que sugasse de dentro dele todas as incertezas que carregava junto de seu sangue.

 Foi saboroso. Prazeroso ter Felipe daquele modo. O alimento, quando caçado e tomado a força tem um gosto muito mais intenso. É como provar a essência da vida que já não existe mais nos seres noturnos, como eu.

 Eu me alimentei de Felipe com uma fome que só senti quando podia me realimentar de Fernão. Uma prática que não é comum depois que você vira vampiro, especialmente porque estreita os laços de sangue que você tem com o outro. E aqui eu devo admitir que a senhora Charlaine Harries acertou ao descrever essa ligação em sua obra Southern Vampires.

 Mas voltando ao Felipe, bem, após ter me saciado de todas as formas possíveis eu o deixei. Ordenei que me esquecesse. E se tem uma habilidade a qual desenvolvi com mais perfeição essa foi a Dominação. E eu a usei sem remorso sobre ele, dizendo-lhe que nada daquilo havia de fato ocorrido.

 Voltei para meu refúgio, para minhas ações corriqueiras e para meu tempo de estudos e treinamentos. Mas na noite seguinte, lá estava Felipe, no mesmo lugar onde eu o ataquei antes. Ele procurava por mim. E com toda minha habilidade de dominação, havia restado algo de mim dentro dele.

 E isso mexeu comigo. Eu caminhei até onde ele estava e ele me encarou por alguns segundos antes de se virar e sair para uma rua escura. Eu o segui sem pensar duas vezes. Ele parou junto a uma parede de pedra e esperou que eu me aproximasse, ainda de costas.

 Quando ele pôde sentir meu corpo mais próximo ao dele, virou-se de frente e inclinou a cabeça para o lado, num ângulo irresistível para um vampiro faminto. Mas eu não tinha fome no momento. Pelo menos não fome de sangue. Toquei seu pescoço com a ponta de meus dedos gelados e segui até a linha de seu queixo, puxando seu rosto para a posição normal.

 “Não é isso o que você quer?” – ele me perguntou decepcionado.

 “E por que eu iria querer isso?” – respondi com um sorriso calmo.

 “Eu não me enganei. Eu sinto aqui, no meu peito, cada vez que meu coração bate, que é a você que eu pertenço desde ontem.”

 “Isso seria um tanto romântico se a rua não estivesse tão escura e o lugar não fosse tão perigoso.”

 “Não, não é romantismo! Se não foi você… Eu preciso achar com quem eu estive ontem. O que me fizeram, precisam fazer de novo! Preciso sentir tudo aquilo novamente!”

 Ele parecia desesperado, enquanto seus olhos corriam por todos os cantos daquela escuridão.

 “E o que você sentiu?” – eu indaguei sem desviar meus olhos dos dele.

 “Não sei dizer, mas é como se cada parte do meu corpo explodisse em pequenas ondas de arrepio.” – ele respondeu sem hesitar, atendendo ao meu comando silencioso.

 Eu sorri. De verdade. Peguei sua mão e levei até a minha boca e fiz com que ele passasse a ponta dos dedos pelas minhas presas, já expostas. Estremeci junto com ele, diante do contato. Mas não o mordi. Não poderia morde-lo. Não ainda.

 Arrastei-o comigo por caminhos tortuosos e chegamos até uma casa rústica, mas iluminada por completo e de onde vinha uma música agradável. Alex, mais uma vez, tocava seu violão enquanto uma outra vampira, cujo nome não mais me lembro, dançava provocativamente. Havia humanos ali, todos responsáveis por seus senhores e a expressão maravilhada de Felipe ao entrar em nosso mundo foi indescritível.

 Os olhos cobiçosos dos outros vampiros caíram sobre a minha companhia e eu podia sentir no ar o cheiro da cobiça. Puxei as mãos de Felipe ao redor da minha cintura e fiz o que sabia ser capaz de mostrar a todos que o rapaz estava comigo. Não pensem que o mordi, não gosto de me alimentar na frente de todos. Ao contrário, eu inclinei minha própria cabeça, exibindo meu pescoço pálido e insinuando que Felipe é quem deveria morde-lo. E ele obedeceu.

 Minto, ele não apenas obedeceu, mas superou qualquer expectativa minha ou de qualquer presente. Ele beijou a área oferecida da minha pele, mordiscou levemente e em seguida lambeu.

 Pronto! Estava feito! Eu assumia Felipe como meu carniçal dali em diante. Fernão observou tudo calado. Ele nunca questionou minhas ações e mesmo quando eu perguntei o que ele achava do que tinha feito, ele apenas me disse:

 “Ele deve ser especial…”

 E foi! Felipe foi mais que especial. Eu o alimentava com o meu sangue, ensinava-lhe tudo sobre a nossa vida e podia-se dizer que eu o preparava para ser mais um para o nobre clã dos Tremere. Ele era inteligente, curioso, dedicado. Auxiliava-me em meus rituais, e tudo o que eu não conseguia fazer de dia podia confiar a seus serviços.

 Foram anos, acho que três ou quatro, de uma sintonia perfeita. Até a volta de Alex e seus companheiros ciganos. Fizemos uma festa, como sempre. Muito vinho, muita música e pouca razão. Era uma noite especial, já que desta vez Fernão não permitiu que os ciganos ficassem acampados, oferecendo hospedagem a todos eles.

 Todos extrapolamos aquela noite. Todos deixamos os piores instintos voltarem como se fossemos novamente neófitos. E eu terminei minha noite na cama de Fernão, esquecendo-me por um momento de meu fiel carniçal.

 Na noite seguinte, quando procurei por Felipe não o encontrei em seu quarto, na biblioteca no templo ou em qualquer lugar. Mas um carniçal e seu mestre têm um elo forte e minha intuição me mandou exatamente para o lugar que eu temia que ele estivesse: a cama de Alex.

 Meu amigo cigano sorriu ao me ver entrar e observar o meu servo nu, deitado ao seu lado, com o peito e as coxas marcados de mordidas. Eu os encarei e chamei por Felipe. Ele abriu os olhos, ainda sonolento, e quando percebeu onde estava, como estava e que eu estava ali, atenta a tudo, ele se encolheu.

 Acho que ele esperava ser espancado, torturado ou algo que lhe infligisse uma dor física. Mas o que eu fiz foi demais para ele. Ordenei que se levantasse, mesmo nu, e assim que fui obedecida, mordi meu próprio pulso e suguei meu sangue o cuspindo em seguida no chão, aos pés dele.

 Seus olhos se arregalaram. Sabia o que aquilo significava. Ele não mais tomaria meu sangue, não mais dividiria comigo as descobertas alquímicas que faziamos e jamais me tomaria em sua cama novamente.

 Ele chorou como uma criança e confesso que me senti mal. Confiava em Felipe e me vi apunhalada pelas costas, pelo meu carniçal e pelo meu amigo.

 Procurei Fernão em seu refúgio secreto. Era a única que tinha acesso a ele. Meu mestre ainda descansava e eu me aconcheguei em seus braços tal qual criança com medo do escuro. Ele passou as mãos por meus cabelos e ficamos assim, por alguns minutos.

 “Não vai me perguntar o que ocorreu?” – eu disse num sussurro.

 “Desde quando eu preciso ouvir da sua boca as coisas que perturbam o seu coração?”

 A resposta dele arrancou um sorriso melancólico dos meus lábios. Afundei-me ainda mais entre seus braços, sentindo o aroma almiscarado de suas roupas.

 “Eu o teria feito minha cria” – comecei dizendo – “E Alex sabia disso, ele já havia enxergado isso em mim”.

 “Pense que Alex lhe fez um favor, minha pequena. Se o rapaz fosse mesmo digno do nosso nome, da nossa tradição, teria resistido a qualquer encanto do cigano. E sobre sua amizade com o ravno, não se desfaça dela. Apenas entenda que as pessoas não podem dar mais do que são capazes. E eu sei que Alex lhe dá tudo o que tenha, mesmo que isso ás vezes pareça pouco para os nossos padrões. E lembre-se também que nem sempre os nosso padrões são bons para todas as pessoas.”

 Ele selou nossa conversa com um beijo suave e terno em meus lábios. Depois seguiu até o quarto onde Alex estava e lhe pediu que fizesse o que precisava ser feito.

 Não soube mais de Felipe. Mas desisti desde então de ter uma cria. Isso faz tanto tempo! Acho que estou preparada para tentar de novo!